(Leonardo Boff)
Há
800 anos, na noite de 19 de março de 1212, dia seguinte à festa de
Domingos de Ramos, Clara de Assis, toda adornada, fugiu de casa para
unir-se ao grupo de Francisco de Assis na capelinha da Porciúncula que
ainda hoje existe. As clarissas do mundo inteiro e toda a família
franciscana celebram esta data que significa a fundação da Ordem de
Santa Clara, espalhada pelo mundo inteiro.
Clara
junto com Francisco – nunca devemos separá-los, pois se haviam
prometido, em seu puro amor, que “nunca mais se separariam” segundo a
bela legenda da época – representa uma das figuras mais luminosas da
Cristandade. É bom lembrá-la neste mês de março, dedicado às mulheres.
Por causa dela, há milhões de Claras e Maria Claras no mundo inteiro.
Ela, de família nobre de Assis, dos Favarone, e ele, filho de um rico e
afluente mercador de tecidos, dos Bernardone.
Com
16 anos de idade quis conhecer o então já famoso Francisco com cerca de
30 anos. Bona, sua amiga íntima, conta, sob juramento nas atas de
canonização, que entre 1210 e 1212 Clara “foi muitas vezes conversar com
Francisco, secretamente, para não ser vista pelos parentes e para
evitar maledicências”. Destes dois anos de encontro nasceu grande
fascínio um pelo outro. Como comenta um de seus melhores pesquisadores, o
suíço Anton Rotzetter em seu livro “Clara de Assis: a primeira mulher
franciscana” (Vozes 1994): “neles irrompeu o Eros no seu sentido mais
próprio e profundo pois sem o Eros nada existe que tenha valor, nem
ciência, nem arte, nem religião, Eros que é a fascinação que impele o
ser humano para o outro e que o liberta da prisão de si mesmo”(p. 63).
Esse Eros fez com que ambos se amassem e se cuidassem mutuamente mas
numa transfiguração espiritual que impediu que se fechassem sobre si
mesmos. Francisco afetuosamente a chamava de a“minha Plantinha”. Três
paixões cultivaram juntos ao longo de toda vida: a paixão pelo Jesus
pobre, a paixão pelos pobres e a paixão um pelo outro. Mas nesta ordem.
Combinaram então a fuga de Clara para unir-se ao seu grupo que queria
viver o evangelho puro e simples sem glossas e interpretações que lhe
tirariam o vigor.
A
cena não tem nada a perder em criatividade, ousadia e beleza, das
melhores cenas de amor dos grandes romances ou filmes. Como poderia uma
jovem rica e bela fugir de casa para se unir a um grupo parecido com aos
“hippies” de hoje? Pois assim devemos representar o movimento inicial
de Francisco. Era um grupo de jovens ricos, vivendo em festas e
serenatas que resolveram fazer uma opção de total despojamento e
rigorosa pobreza nos passos de Jesus pobre. Não queriam fazer caridade
para pobres, mas viver com eles e como eles. E o fizeram num espírito de
grande jovialidade, sem sequer criticar a opulenta Igreja dos Papas.
Na
noite do dia de 19 de março de 1212, Clara, escondida, fugiu de casa e
chegou à Porciúncula. Entre luzes bruxoleantes, Francisco e os
companheiros a receberam festivamente. E em sinal de sua incorporação ao
grupo, Francisco lhe cortou os belos cabelos louros. Em seguida, Clara
foi vestida com as roupas dos pobres, não tingidas, mais um saco que um
vestido.
Depois
da alegria, das canções dos trovadores franceses que Francisco tanto
gostava e das muitas orações, foi levada para dormir no convento das
beneditinas a 4 km de Assis. 16 dias após, sua irmã mais nova, Ines,
também fugiu e se uniu à irmã. A família Favarone tentou, até com
violência, retirar as filhas. Mas Clara se agarrou às toalhas do altar,
mostrou a cabeça raspada e impediu que a levassem. O mesmo destemor
mostrou quando o Papa Inocêncio III não quis aprovar o voto de pobreza
absoluta. Lutou tanto até que o Papa enfim consentisse. Assim nasceu a
Ordem das Clarissas.
Seu corpo intacto depois de 800 anos comprova, uma vez mais, que o amor é mais forte que a morte.
Leonardo Boff é autor de Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 2003.
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