Achei o texto abaixo perdido entre meus e-mails e resolvi guardar para publicá-lo no Dia do Beijo. Então chegou a hora. Foi um email enviado por amiga da faculdade em Abril de 2004. Será que ela vai descobrir que foi ela que mandou isso? Será que ela lembra?
E-mail original:
Descobri hoje, no conjunto dos milhões de inutilidades que leio diariamente, que hoje é comemorado o Dia do Beijo. Lembrei que, quando ainda estava no mestrado, pesquisando numa das principais revistas brasileiras da década de 20, li um artigo que falava sobre o beijo. De tão engraçado que era o artigo, copiei-o... Envio, então, o artigo; e muitos beijos.
Adriana.
PS: Contextualizando o artigo: a década de 20 é marcada, no Brasil, pelo rompimento do puritanismo oitocentista. As elites intelectual e artística nacionais vão utilizar as revistas como veículos para divulgação de novos hábitos e naturalização de costumes. É neste sentido que este artigo se publica. Repare que ele, sendo eminentemente pedagógico, é quase um panfleto; uma apologia ao beijo!
PS2: Optei por manter a grafia original das palavras. Esse é um outro barato na leitura!
Outros beijos!
Agora o artigo:
Anatomia e Phisiologia do Beijo
(por Berilo Neves, especial à Fon Fon, 1920.)
O beijo é a mais interessante das invenções humanas. Menos útil do que o rádio, mais perigoso do que o avião, o beijo é – como a Philosophia e a Política - um privilégio do gênero humano. Os outros animais não se beijam; quando muito, cheiram-se. E do cheirar ao beijo vae uma distancia que separa a pata do burro da pétala da rosa...
Há tribus, na África, em que os namorados, quando querem demonstrar seu affeto, se esfregam os narizes, um ao outro. É uma forma primitiva do beijo, o beijo dos analphabetos. Quando o beijo tomou a forma actual, como expressão de carinho? A storia dessa carícia leve é obscura como a storia da mesma Humanidade. Evidentemente elle era, no começo, um elemento dos ritos e das religiões. Osculavam-se os Deuses antes de se chegarem a oscular as mulheres. O beijo sahiu da Cathedral para as alevoas nupciaes e, destas, para o cinema e para a rua. Hoje, persiste o ósculo no Livro Sagrado, durante o santo sacrifício da missa – mas esse sinal do rito romano nada tem que ver com as dentadas furiosas que se mutuam os rapazes do século XX e as moças do século XIX...
Hoje, todos se beijam, mais ou menos furiosamente, e por toda a parte. O beijo invadiu as repartições públicas, apossou-se dos Ministérios, derramou-se pelos cinemas e casas de diversão e ainda surge, aqui e alli, ao dobrar de uma esquina, atraz de uma porta que se abre, por entre a agitação breve de uma cortina que se descerra... Todo mundo é propício ao beijo, porque o beijo é um fugitivo e delicioso momento. Sendo uma coisa sem sabor é, todavia, a mais saborosa de todas as coisas. Não sabendo falar, diz tudo; e, não dizendo nada, os que se beijam ficam sabendo de tudo o que não dizer um ao outro... Serve para quando não se tem assunto nenhum, como despertador da eloqüência; e serve para quando, havendo assunto demais, seja necessário afastar o perigo de uma palavra rude, ou injusta... De todas as maneiras de tapar a bôcca às mulheres, é a mais segura – e a mais rápida...
A Hygiene condena o beijo como uma porcaria, mas o Amor aplaude-o, como uma delícia. “Tem micróbios!“, diz uma; “mas é gostoso!”, responde o outro... “Transmite a tuberculose”, afirma aquela; “propaga a espécie humana!”, responde este. E o duelo continua, entre o Microscópio e o Romantismo; entre a fria lâmina da Sciencia e as flores azues do Sentimento...
Que é o beijo? As definições são incontáveis como as gotas dágua no mar. Para mim, é apenas isto: uma phrase sem palavras. E a mais expressiva de todas as phrases: depois dela não é preciso dizer outras phrases para esclarecer melhor o pensamento. A mulher mais ingênua do mundo (ainda haverá alguma?) não pede explicações depois de um beijo; pede outro beijo... É estranha a capacidade de reprodução de um beijo! Nascido um, logo outros se geram com uma fecundidade superior á dos coelhos... dizem que palavra puxa palavra... Nem sempre! Beijo, sim, puxa beijo. Até que o medo de ser visto puxa cada namorado à sua parte...
Disse alguém que o beijo começa com os olhos - e é uma grande verdade! Nunca duas bocas se aproximam sem que antes quatro olhos se entendam... A cumplicidade silenciosa do olhar, nesses delictos, se manifesta... Sem esse entendimento prévio, o beijo pode transformar-se numa tentactiva fracassada de beijar – o que é sempre doloroso e humilhante! Nada mais mentiroso do que a expressão roubar um beijo. Beijos dão-se... ou não existem! Não há beijos roubados; quando muito, há tentativas frustradas de beijar...
Só existe, verdadeiramente, o beijo, quando duas bocas se fundem num só impulso. O beijo é uma antropophagia a dois: ambos querem devorar-se da melhor maneira possível. O beijo na fronte ou na mão é uma sombra de beijo. Nada mais. Ora, se uma bocca fica inerte e fria, como uma pedra de mármore, não há, nem pode haver beijo... A cumplicidade é indispensável ao delicto...
Para avaliar a eficcacia de um beijo de amôr, duas condições devem ser pesquizadas: a duração e a intensidade. Há beijos rápidos, profundos, em cujo decurso uma alma pode sorver outra alma, como se bebesse um líquido. E os beijos longos, de aspiração contínua, em cujo decurso pode se construir um edifício de appartamentos, ou escrever um romance de 400 páginas... O primeiro é o beijo relâmpago, característico das paixões violentas e fugazes; o segundo, próprio dos sentimentos duradoiros, que acabam em casamentos, casa montada e marcha nupcial de Mendelssohn...
O primeiro beijo tem um gosto especial, que lembra a baunilha e o cheiro de rosas frescas. Com a repetição, o beijo vae perdendo a baunilha e a rosa, e cheirando, progressivamente, a canela, laranja da China, frango assado e alho.. No fim, resta o gosto da dentadura; é a phase da desillusão e do tédio... É preciso evitar, ao beijo, essa última desgraçadabilissima sensação...
Com o atricto, todas as coisas se gastam – desde a aza das borboletas ao dorso das montanhas. Com a multiplicação dos beijos, gasta-se a sensibilidade e desgasta-se o amor. Esta carícia precisa de ser medida, como os venenos para usos therapeuticos. O que mais ama é o que melhor sabe beijar...
Bocca! Fonte ardente dos beijos, túmulo frio do Amor...
Comentários
Postar um comentário
Por favor deixe aqui seu comentário